1. A dança é dos corpos
corpos esquecidos, adormecidos e derretidos,
corpos infantis, curiosos, ágeis, deslizantes,
corpos velhos, enrugados e cansados,
corpos jovens, disruptivos, modificados e personalizados,
corpos deprimidos, oprimidos, empilhados, embrulhados,
corpos magros, esqueléticos, insignificantes,
corpos voluptuosos, sinuosos, brilhantes,
corpos negros, amarelos e azuis,
corpos próximos e familiares,
corpos brutos, fissurados, marcados, violentados,
corpos sensuais e sexuais,
corpos animais, primitivos e naturais,
corpos obesos e cheios,
corpos incompletos, amputados e protéticos,
corpos fictícios, digitais, transumanos,
corpos vergados e suplicantes,
corpos ativos, reativos e políticos,
corpos perdidos,
corpos extintos,
corpos noturnos, loucos e sós,
corpos imortais,
corpos ausentes,
corpos fracos e frágeis,
corpos nus, despidos, desenfeitados,
corpos sujos e malcheirosos,
corpos com entradas e saídas,
corpos permeáveis e sensíveis,
corpos dos outros,
corpos nossos.
2. Diz Gonçalo M. Tavares, n’O Livro da Dança
Meter na dança carne.
A carne é igual no feminino e no masculino.
Descobrir o corpo anterior ao feminino e descobrir o corpo anterior ao masculino.
A carne é o corpo anterior ao sexo.
Meter carne na dança.
Deixar a dança ser primeiro que o corpo.
Não meter carne na dança. Não tirar carne da dança.
Deixar a dança ser naturalmente carne.
3. Carta ao corpo em manifesto do Miguel
Este é um corpo em processo. É um corpo turbulento, que caminha sem ver o final da estrada. É um corpo veículo produtor, produtor de emoções, onde a generosidade do tempo não lhe tocou. Este é um corpo com necessidades que vê adiadas por imposição social. É um corpo político, cansado de visões estereotipadas, cansado de filtros. Este corpo olha, este corpo sente, este corpo é vulnerável, pessoal e intransmissível. Este corpo é uma escultura, é a exacerbação da perfeição. Este é um corpo capaz, capaz de passar, aceitar e ressignificar. Este é um corpo que questiona, que reconhece e que muda. Este é um corpo inundado. Este é um corpo com história. Este corpo cuja paisagem já não cabe nos seus limites. Este corpo é casa. Este corpo é a factualidade da vida. Este corpo tem voz e chama-se MIGUEL.
Olá, Miguel. Olá, corpo do Miguel. Proponho uma conversa de corpo para corpo. Este também é um corpo em processo, diria que todos o são. Estão. Que qualquer coisa que existe está em processo. Falas em turbulência e acho que sei o que queres dizer. A minha é mais como as linhas intermitentes da estrada. O corpo como veículo para pertencer à realidade – um carro com janelas. Ou sem. Lembro-me do texto de Matthew Goulish: not only am I inside the car, but in fact, everything is inside my car – the road is inside my car. O corpo como uma máquina de produzir emoções. Produzir, produzir, produzir – imposição! É difícil ver um corpo como um corpo, tem muitas camadas: o corpo e a visão. Filtros, como dizes. Tu olhas e eu também olho, tu sentes e eu também sinto, tu és vulnerável e eu também. Pessoais mas um bocadinho transmissíveis. Somos forma, volume, equilíbrio, peso, massa, densidade, texturas, bordas, contornos. A receita varia de uns para outros mas existimos e talvez isso seja ser perfeito. O corpo capaz de transformar (a forma aqui outra vez). O corpo capaz de transbordar (as bordas aqui outra vez). Um corpo com história, ou sem história, ou com histórias diferentes ao longo do tempo. Primavera, verão, outono, inverno. Parece que agora somos ainda mais vizinhos. Olá, Miguel.
4. Procurar fora da verticalidade
A primeira dança é o erguer-se nos dois pés. O ser humano é bailarino pela sua condição.
(Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo)
For in the void of a body expropriated of its centre, there is room for dance.
(Boris Charmatz, manifesto for a National Choreographic Centre)
5. O corpo contemporâneo está demasiado limpo
Está tudo pronto-a-comer, pronto-a-vestir, pronto-a-transportar, pronto-a-funcionar, pronto-a-usar.
O corpo contemporâneo precisa de se sujar — dançar!
16 de fevereiro de 2022