Revista de Investigação Artística, Criação e Tecnologia: N.º 5 (novembro 2022)
Joana Franco
ISSN: 2184-8459
Palavras-chave: Criação Coreográfica, Gerar Materiais de Movimento, Registo do Processo
Disponível em: https://riact.belasartes.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2022/11/RIACT_5.pdf
Resumo Geometrias da sintonia explora um conjunto de ferramentas de improvisação desenvolvidas pelo coletivo TETO (Joana Franco, João Gato, Lara Maia e Samuel Dias), com o objetivo de propor uma relação simbiótica entre dança e música no contexto de investigação artística em estúdio. Em primeiro lugar, são introduzidas algumas características da improvisação na dança e na música, desenvolvidas depois numa secção sobre a ferramenta “composição instantânea”. De seguida, aborda-se o conceito de transversalidade, isto é, o entendimento comum de conceitos inerentes à prática de dança e de música, analisados através do “gráfico”. No terceiro capítulo, fala-se da temporalidade das ações performáticas, concluindo-o com a partilha da experiência da ferramenta “monotonia”. Por fim, é apresentado o conceito de esforço, utilizando o exemplo da ferramenta “tema e variação” para aprofundar a sua aplicação prática.
INTRODUÇÃO
“In the 1940s, Merce Cunningham and his life partner, composer John Cage, developed a radical new concept: music and dance could exist independently within the same performance. The dancers’ movements would no longer be tied to the rhythms, mood, and structure of music.” 1
(Merce Cunningham Trust, 2021)
“[Trisha] Brown’s early improvisations were set to breath, silence, and the sounds of footfalls; without strong aural components, audiences could focus more on the movements than on the accompaniment.” 2
(Walker Art Center, 2022)
“With The show must go on, Jérôme Bel dissects the performance mechanisms, staging about twenty performers and a DJ who plays the last thirty years hits one after another. He plays with the performance expectations and with mirror-effects between performers and spectators.” 3
(Association RB, 2016)
Os três exemplos apresentam diferentes propostas de relação entre dança e música. Cunningham encontra uma associação em pontos sensíveis, provocados pelo acaso, em que os dois planos, coreográfico e musical, se cruzam. Brown encontra uma outra através de um “corpo-orquestra” que, enquanto dança, gera igualmente som através das suas manifestações fisiológicas e da sua movimentação no espaço. Bel encontra ainda outra relação quando dá destaque a temas musicais que ativam sensações e evocam memórias nos espectadores, acompanhando-os com situações corporais que sublinham essas imagens, numa relação quer de adição, como de oposição. Contudo, o motor criador destes contextos é a criação coreográfica, o que predetermina uma visão a partir do prisma da dança onde as variadas formas de utilizar música pretendem alargar as suas fronteiras em vez de estudar modelos de complementaridade entre as duas linguagens artísticas.
Proponho-me a refletir e a indagar uma possível relação simbiótica entre dança e música, através da articulação de conceitos comuns e sugerir um entendimento uno dos seus principais componentes. A minha pesquisa parte do trabalho de investigação do coletivo TETO, no qual me insiro, e que tem vindo a explorar esta relação através da criação de ferramentas de improvisação e da sua manipulação em estúdio.
Depois de uma breve contextualização sobre a proposta do coletivo, cada capítulo deste trabalho esmiúça conceitos específicos associados a cada uma das ferramentas. Em primeiro lugar, são introduzidas algumas características da improvisação na dança e na música que podem ser potenciadoras de um trabalho artístico investigativo, desenvolvidas depois numa secção sobrea ferramenta “composição instantânea”. De seguida, aborda-se o conceito de transversalidade, isto é, o entendimento comum de conceitos inerentes à prática de dança e de música, analisados através do “gráfico”. No terceiro capítulo, fala-se da temporalidade das ações performáticas, concluindo-o com a partilha da experiência da ferramenta “monotonia”. Por fim, é apresentado o conceito de esforço, utilizando o exemplo da ferramenta “tema e variação” para aprofundar a sua aplicação prática.

Todas as ilustrações foram retiradas dos apontamentos das várias residências artísticas em estúdio realizadas pelo coletivo. Os desenhos, geralmente de teor esquemático, procuravam resumir as imagens mentais dos conceitos criados e explorados pelo TETO.
COLETIVO TETO
Joana Franco e Lara Maia, licenciadas pela Escola Superior de Dança (ESD), e João Gato e Samuel Dias, licenciados pela Escola Superior de Música de Lisboa, criaram o coletivo TETO em outubro de 20214, movidos/as pelo interesse em colaborar interdisciplinarmente com outros/as jovens artistas e em resposta à pouca promoção de contacto entre alunos/as das escolas artísticas. Numa primeira fase, o seu trabalho desenvolvia-se num ambiente de partilha, de experimentação livre e de diluição de fronteiras interdisciplinares, com vista a propor um novo contexto de apresentação performativa de simbiose entre dança e música. No entanto, os encontros em estúdio foram rapidamente dominados por uma vontade coletiva de investigar aprofundadamente possíveis ferramentas comuns a ambas as linguagens. Por isso, o TETO tem vindo a intercalar pesquisa prática em contexto de residência artística com reflexão teórica sobre os conteúdos explorados, colocando constantemente em diálogo as propostas de ponto de vista teórico com o ato de criação de elementos cinéticos e sonoros. Até ao momento, o coletivo trabalhou em quatro períodos de residência artística em estúdio, na OSSO – Associação Cultural, nos Estúdios Victor Córdon (EVC) e na ESD. Ao longo dessas várias etapas, foi criando e desenvolvendo diversos materiais, documentando o processo através de registos de vídeo das suas explorações, apontamentos esquemáticos de ideias e gravações de áudio de discussões sobre conceitos, entre outros. Estes elementos foram compilados numa apresentação informal em junho de 2022, nos EVC, no formato de performance e exposição.
Joana Franco é uma jovem artista. A sua formação reflete um olhar transdisciplinar, tendo passado pela Escola Artística Soares dos Reis, pela Escola Superior de Dança e pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Recentemente, tem vindo a realizar projetos de dança, performance, vídeo, design gráfico e webdesign.
João Gato é um saxofonista com formação na área do jazz, que se tem dedicado nos últimos anos a explorar improvisação sem barreiras formais. Atualmente co-lidera o projeto Apophenia e integra projetos como Filipa Franco Quinteto, Sonic Voyaging, S.E Pony e Orquestra de Jazz de Setúbal.
Lara Maia é artista, em grande parte, na área da dança e da performance. Destacam-se as obras “encontros corporais”, “Não era nada disto, o amor” e “Bjs” – em cocriação com Joana Franco. Colabora com outros artistas em vídeo e fotografia. É diretora artística do festival VAGEM. Licenciou-se pela Escola Superior de Dança, tendo também formação em música e artes visuais.
Samuel Dias, músico improvisador e compositor, faz da bateria o seu principal veículo de exploração e pesquisa artística. Na sua formação passou pelo conservatório de música de Torres Vedras, pela Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal e pela Escola Superior de Música de Lisboa.

Este processo insere-se no campo da investigação em artes, que visa “encontrar, tematizar e defender publicamente novos sentidos para a realização artística (…) e para a reflexão sobre a mesma (…), de uma forma rigorosamente plural, exigindo das instâncias académicas um comportamento mais poroso e relacional” (Quaresma & Dias, 2015, p.13). De facto, o TETO procura a ampliação do conhecimento das matérias em estudo, propondo novas possibilidades para a prática artística, mas não o fazendo através de um objeto artístico. Estas características aproximam-se das da investigação que Borgdorff (2012, p.147) caracteriza como “for the arts”, ou seja, a prática artística é tida como o objetivo (e não como o objeto de estudo), não contemplando a criação de um objeto. Ainda assim, a expressão “investigação para as artes” parece-me que manifesta uma distância entre o processo de investigação e a prática artística, o que não espelha o trabalho do TETO. Por outro lado, Frayling (1993, p.5) adota o termo “through art” – investigação através da arte – para descrever processos investigativos onde são estudados materiais, desenvolvidas ferramentas ou adotadas práticas diarísticas, continuadas e experimentais que atuam no campo artístico e alargam as suas possibilidades. Estas características são igualmente compatíveis com o processo que o TETO tem vindo a adotar na sua pesquisa. No entanto, não contemplam a prática artística como veículo metodológico. Penso que seja importante referir-me ao modelo de investigação do TETO também como “practice-led”, na medida em que a prática artística, o conhecimento especializado e o processo criativo levam a um entendimento específico que pode ser comunicado num formato de dissertação escrita (Smith & Dean, 2009, p.5).
IMPROVISAÇÃO
A investigação do TETO em contexto de estúdio tem sido feita através de métodos de improvisação estruturada. Quer na dança contemporânea, quer na música, é comum improvisar em resposta a tarefas ou instruções precisas como forma de gerar material de movimento ou de som, o que poderá trazer vantagens para a exploração das linguagens (DeLahunta et al., 2011). Em primeiro lugar,a improvisação potencia a descoberta de novas propostas, algo que nem sempre poderia ser encontrado através de um processo predefinido e sistematizado. Carter (2000) sugere que a improvisação envolve a suspensão de estruturas próprias de uma prática específica e a introdução de elementos não tradicionais. No caso do TETO, não seria benéfico optar-se por um modelo particular a uma das matérias e, por isso, o recurso à improvisação oferece o poder de inventar espontaneamente novas formas que não estão condicionadas a nenhuma das práticas, fomentado a contribuição de diferentes conhecimentos.



Em segundo lugar, tanto a dança como a música encontram-se no campo das artes performativas, implicando uma presença corporal obrigatória na ativação de qualquer objeto artístico criado por estas matérias. Nesse sentido, a improvisação permite um estado de alerta físico, conceptual e emocional que interfere a todo o momento com o material gerado, isto é, possibilita uma tomada de decisão constante, subordinada a um determinado plano de pensamento, mais ou menos amplo de acordo com o tipo de estímulos a que se decide atentar (Matteucci, 2022). É possível encontrar nesta situação uma consciência dupla: os/as performers experienciam simultaneamente a ação do seu corpo (interior), através da propriocepção, e o objeto que coletivamente fazem existir a cada momento (exterior). Como a impermeabilidade entre o interior e o exterior ao corpo é impossível, existe uma circulação energética entre bailarinas e movimento, músicos e som, bailarinas e som, músicos e movimento, artistas e matéria, conceitos e materialização.
Por último, a improvisação permite um formato de criação não-hierárquico, correspondendo à dinâmica de coletivo. Como escreve Leão (2014, p.4), “as improvisações artísticas são alcançadas a partir de uma definição aberta de papéis, que demanda por consenso, respeito às diversidades de posição crítica e artística, que encoraja a cooperação, a interdependência e a alternância, que se influenciam e se redefinem mutuamente”. Para além de proporcionar a todos os elementos do TETO um espaço homogéneo de contribuição, iguala também a influência das duas linguagens no trabalho desenvolvido, o que não aconteceria, por exemplo, numa situação de colaboração entre um/a coreógrafo/a e um/a compositor/a para a criação de uma obra musical para uma peça de dança.
COMPOSIÇÃO
INSTANTÂNEA
é uma ferramenta de improvisação onde os conteúdos musicais e coreográficos são pensados como uma peça, atentando à composição.


O pensamento que dá origem à composição instantânea parte de um método de improvisação, da estética da improvisação livre em música, desenvolvido informalmente pelo saxofonista Yedo Gibson. Na sua prática, Gibson pesquisa uma improvisação “sem lama” – expressão usada pelo próprio, que pretende fomentar a exclusão de momentos vazios de intenção ou direção e o desenvolvimento de um pensamento composicional. Neste método, é dada especial atenção à noção de forma e à clareza das secções que compõe o todo, desde o primeiro ao último momento da improvisação. No contexto da investigação do TETO, o conceito foi aplicado à improvisação simultânea de dança e música, de forma a complexificar a sua relação e a potenciar a qualidade artística dos materiais gerados. Apesar de não haver parâmetros de avaliação que distingam claramente o resultado de uma improvisação livre e o de uma improvisação segundo a composição instantânea, nem regras específicas inerentes à própria ferramenta, existem alguns aspetos a ter em conta, com influência nas tomadas de decisão do/a performer. De forma a abolir imprevistos e experimentações, é importante que o/a performer se abstraia do papel de criador, abdicando das suas intenções criativas em prol de um objeto artístico “sem autoria”. Ao mesmo tempo, é igualmente relevante o entendimento do desenvolvimento dos materiais ao nível da dimensão temporal, registando mentalmente as possíveis subdivisões da peça, ainda que as transições entre elas possam ser subtis. Por fim, quanto maior o nível de consciência da contribuição de cada intérprete para o todo composicional, maior a clareza e precisão dos gestos criados e menor a probabilidade de momentos redundantes ou de pesquisa de movimento ou som.

É importante salientar que esta ferramenta de improvisação não implica um planeamento prévio dos eventos, mas sim, um estado de alerta físico e mental para os estímulos internos e externos. Buckwalter (2010, p.10) descreve a experiência de improvisação entendida como composição em tempo real: “You are not out there in the performance space all alone. You’ve got the space and your relationship to it and your relationships in it; you have time on your hands to shape like clay by marking it with activity or lack of it; and in many instances, you also have the other improvisers.” 5

No exercício de composição instantânea, antes do primeiro gesto coreográfico ou musical, geralmente, os/as performers precisam de um breve momento para se concentrarem: cada um/a desenvolveu o seu método de preparação, desde ficcionar que a peça a ser interpretada fora criada por outra pessoa, a inventar um cenário de apresentação da peça, ou a imaginar um espaço vazio a ser preenchido com os materiais gerados durante o exercício.
TRANSVERSALIDADE
O principal objetivo da investigação do TETO é encontrar um ponto de vista que sobreponha totalmente os conceitos inerentes à dança e à música. A certeza das coordenadas desse ponto vai oscilando de acordo com os avanços no entendimento híbrido das duas linguagens: geralmente, os momentos de clara divergência têm sido encontrados através da experiência prática e resolvidos numa reflexão teórica posterior. No regresso à prática, existe uma procura por uma exploração corroboradora desse novo entendimento e o levantamento de novas questões. Como no pensamento por trás de Points in Space, numa nova referência a Cunningham (que, por sua vez, se inspira em Albert Einstein), não há pontos fixos no espaço e todos são válidos e pertinentes. É bastante evidente que a experiência artística de dança e de música, tanto do lado do/a performer, como do lado do público, é diferente, nem que seja porque são maioritariamente apreendidas por dois sentidos diferentes – a visão e a audição, respetivamente. Por isso, o coletivo tem-se focado em todo o processo anterior ao instante em que é materializado um movimento ou um som, idealizando um modo de pensar idêntico, a partir do qual pudesse ser gerada dança ou música. No contexto do TETO, essa decisão está dependente do conhecimento prévio de uma das linguagens, ou seja, as bailarinas automaticamente respondem com movimento e os músicos com som.




GRÁFICO
é uma ferramenta de improvisação conjunta onde um gráfico serve de base comum para a dança e a música, agilizando a natureza híbrida da sua junção e propondo novas formas dinâmicas ou de direção. O eixo horizontal representa a progressão temporal. O eixo vertical pode ser lido segundo conceitos transversais às duas linguagens: densidade, propagação, tensão, coerência de contexto e altura.

Esse paralelismo tem vindo a ser explorado pelo TETO através de um exercício de leitura coletiva de um gráfico de linha. Foi criado um pequeno programa digital “compositor-maestro” para gerar aleatoriamente a linha do gráfico e guiar a sua leitura. A oscilação vertical da linha orienta a produção de movimento pelas bailarinas e de som pelos músicos, que partem em conjunto para o exercício com um dos parâmetros definidos para o eixo vertical em mente. Cada parâmetro dirige a atenção do/a performer para uma componente específica da sua linguagem. É evidente que, dada a natureza distinta das duas linguagens, o parâmetro atua de forma diferente na dança e na música. No entanto, essa separação acontece apenas ao nível da materialização, já que o conceito é claro na sua forma abstrata. Atente-se a cada um.
Por densidade entende-se grau de condensação ou espaçamento da informação no tempo. A cada momento, quanto mais afastada a linha do eixo horizontal, mais quantidade de movimento ou de som é gerada. A frequência dos movimentos e dos sons é percecionada sobretudo a partir do momento inicial de cada um, ou seja, existe igualmente uma maior concentração de tomadas de decisão de produção de algo novo ou de novo. De facto, é precisamente a possibilidade de fragmentação das frases coreográficas e musicais que permite um entendimento do nível de densidade. Em momentos de zero densidade, tanto é possível optar-se pela pausa ou silêncio, como pelo prolongamento de um único movimento ou som.
A “propagação” é o nível de ocupação do espaço pelo movimento – dimensão e projeção espacial – ou pelo som – volume. O termo “tensão” representa o nível de energia aplicado para gerar dança ou música, ou seja, o grau de atividade muscular aplicada à ação performativa. É importante salientar que, numa primeira instância, a tensão poderá aparentar estar diretamente relacionada com a propagação. No entanto, e apesar de movimentos e sons produzidos com maior tensão serem geralmente também de maior propagação, é possível romper esse padrão. Por exemplo, um corpo poderá aplicar uma grande quantidade de energia numa determinada direção, utilizando o grupo muscular específico para o efeito, ativando igualmente o grupo muscular contrário com uma quantidade de energia semelhante. Apesar da enorme tensão, a anulação das forças origina um movimento ou um som de pouca propagação. O mesmo poderá acontecer com a utilização de forças exteriores ao corpo, como é o caso da força da gravidade, para diminuir a tensão e aumentar a propagação: o baterista pode deixar cair o braço que segura na baqueta em direção a uma das peças da bateria (pouca tensão), produzindo um som de grande volume (muita propagação).

O parâmetro “coerência de contexto” é interpretado como o grau de concordância do indivíduo perante a base. Este conceito direciona a atenção para o produto produzido a cada momento coletivamente, em vez de encarregar a coerência do grupo apenas à leitura da linha do gráfico. Deste modo, cada performer precisa de fazer uma distinção entre a sua ação e o conjunto das ações dos outros três elementos, para poder contrariar ou alinhar-se com o material gerado. O grau de coerência refere-se sobretudo às características do movimento e do som abordadas individualmente em cada outro parâmetro: o nível de esforço (tensão) e a sua relação com o espaço (propagação) e com o tempo (densidade). Devido à combinação destes elementos num único gesto performativo, individual ou coletivo, cada intérprete identifica uma dessas características como a mais notória e, dependendo da geografia da linha do gráfico, produz um outro gesto com características mais ou menos semelhantes.
Por fim, a “altura” pode ter vários significados. Um deles aciona uma componente espacial, ou seja, convoca a noção de distância entre um ponto (base) e um outro (extremidade), segundo um eixo vertical. Para este exercício, define-se que, no caso da dança, “altura” se refere à distância de uma determinada parte do corpo ao solo, tendo em conta a estrutura corporal de um indivíduo em posição vertical neutra. Em termos práticos, o topo da cabeça é o ponto mais alto e a planta dos pés o mais baixo. Contudo, na música, “altura” é um dos principais termos do vocabulário musical, apesar de não estar relacionado com espaço. O uso desta palavra está associado à frequência das ondas sonoras, ou seja, aos sons graves e agudos – frequências mais altas originam sons mais agudos. Neste exercício, a “altura” tem como limites o registo do instrumento, isto é, o som mais grave e o mais agudo passíveis de serem produzidos pelo saxofone e pela bateria. É importante referir que, mesmo não sendo a bateria um instrumento melódico, é na mesma possível organizar as frequências sonoras criadas pelo instrumento por altura. Graças à distribuição espacial das peças da bateria, pode ser igualmente explorada a perspetiva de “altura” mais próxima da aplicada ao corpo, na medida em que a linha do gráfico define a peça a ser utilizada, de acordo com a sua distância do solo. Esta dupla possibilidade mostra alguma fragilidade na transversalidade do termo “altura”, evidenciando as qualidades espaciais do movimento e a dificuldade em estabelecer um paralelo para o “tom” musical no vocabulário da dança. Ao mesmo tempo, demonstra o natural afeto entre sons graves e movimentos mais próximos do chão e sons agudos e movimentos com tendência a elevarem-se do solo.
TEMPORALIDADE
Uma das primeiras retas traçadas pelo TETO que intersecta os planos da dança e da música toca na particularidade de serem artes no tempo, isto é, “a necessidade comum de um sistema de organização de tempo compreensível e consistente com a natureza física e psicológica do ser humano” 6 (Zallman, 1971, p. 79). No caso da música, existe efetivamente um sistema de notação utilizado de forma maioritariamente global que, graças ao seu longo processo de desenvolvimento a par dos avanços musicais, permite transcrever com bastante precisão as relações temporais e dinâmicas entre notas. Na área de dança, existem também algumas propostas de codificação de movimento usadas para documentação, educação e investigação sobre dança, entre as mais conhecidas, a Kinetography Laban ou Labanotation, desenvolvida por Rudolf von Laban (International Council of Kinetography Laban, 2020); contudo, a sua complexidade ou pouca eficácia na aplicação prática não as torna equiparáveis ao estabelecido sistema de notação musical. Ainda assim, no âmbito da improvisação, é raro o recurso a qualquer tipo de partitura, o que não implica uma abstração da mencionada organização temporal. Tanto na dança, como na música, a sucessão de movimentos ou sons implica múltiplos inícios e fins, mesmo que estes se sobreponham ou se revelem ambíguos. Todos acontecem sob desejo e ação de um ser humano e estão dependentes da persistência da sua disposição para os fazer acontecer. Apoiando-se em Laban, Gil (2001, p. 3) acrescenta que “o esforço, que é uma espécie de força vital, encerra já em si, quase no estado de latência, a forma do movimento que desenvolverá” – para esta investigação, poderá pensar-se igualmente em som, para além de movimento. Neste sentido, a intenção antecede e acompanha cada gesto que gera dança ou música e que preenche, em todos os instantes, um tempo de manifestação artística balizado por um início e um fim total.
MONOTONIA
é uma proposta que pretende encontrar um estado de monotonia através da repetição de sons e movimentos durante um longo período de tempo. A série a ser repetida deverá ser concisa.
Num dos exercícios desenvolvidos pelo TETO, a exploração do conceito de “monotonia” permite um melhor entendimento da dimensão temporal das matérias em estudo e da sua relação com a intenção performativa. A proposta parte de três premissas: a experiência deve ser de longa duração, mas sem nenhuma especificação de valores exatos de tempo, nem acesso a uma cronometração; cada artista dá início à sua ação com um movimento ou um som específico; esse elemento deve ser repetido um número indefinido de vezes. Quando a ferramenta é posta em prática, surgem, geralmente logo nos primeiros instantes, os contornos de uma forma composta por movimento e por som, gerada a partir da intenção individual de cada performer. Apesar de, nos instantes seguintes, surgir automaticamente uma consciência do objeto coletivo, essa noção não se sobrepõe à intenção inicial, nem a altera. Por um lado, o fenómeno da repetição provoca uma habituação à estratégia de ação para a materialização do gesto, tornando-a possivelmente menos ponderada e consciente. Por outro, a contínua necessidade de ativação do gesto obriga à manutenção de, pelo menos, uma intenção de ação que o leve do início ao fim. Esta experiência dupla provoca uma sensação de circularidade dentro de uma semirreta temporal de fim desconhecido – a monotonia perdura desde que todos/as os/as artistas decidam permanecer ativos em sucessivas manifestações do “elemento base”. Segundo Lagaay (2018, p. 22), o neutro é inevitavelmente dinâmico: não evoca um evento com um início e um fim, mas equivale a uma resistência continuamente ativa e dinâmica – um movimento persistente que nunca se deixa determinar definitivamente. A decisão de fim parte, geralmente, ou das primeiras hesitações que começam a destabilizar subtilmente a cadência da construção e cujo efeito exponencial quebra a monotonia, ou de uma suspensão coletiva e consequente anulação da intenção, que resulta em “pausa” e em “silêncio”.
A permanência da intenção de um gesto durante um longo período de tempo levanta questões relativamente à sua reprodução – será que vai sofrendo mutações? E, da mesma forma, será que a monotonia requere obrigatoriamente uma repetição rígida dos elementos que a compõem (admitindo a possibilidade de repetição de um gesto)? No contexto da utilização da ferramenta criada pelo TETO, a noção de escala entre emissor e recetor pode ter algum impacto na consideração das respostas a estas questões. A monotonia do TETO é gerada e rececionada por corpos humanos: as bailarinas executam movimentos à escala da visão e da propriocepção do ser humano e os músicos produzem sons à escala das capacidades auditivas do ouvido humano. As oscilações inerentes ao funcionamento do ser humano tornam as ligeiras mutações pouco percetíveis “a olho nu”, não prejudicando a monotonia e permitindo a conservação desse estado.

ESFORÇO
Retoma-se agora a noção de “esforço”, para a associar diretamente ao uso de uma força originadora de ação. De facto, para dançar, o/a bailarino/a exerce diversas forças contra a gravidade, através de uma superfície de sustentação, tal como, para tocar, o/a músico/a aplica forças diferentes no seu instrumento com o intuito de produzir vários sons. Numa primeira análise, uma clara divergência entre dança e música seria a aparente autossuficiência do corpo, na primeira, e a dependência de um instrumento musical, na segunda (excluindo a possibilidade de utilização de apenas o próprio corpo para a produção de som). No entanto, Costa (2018, p. 213) parte da sua experiência pessoal como baterista para afirmar que “(…) a energia do impacto, mediada por uma baqueta ou pelas próprias mãos, é profundamente absorvida pelo corpo, criando uma relação estreita entre o som e o pensamento, que se manifesta também na sensação de intimidade, cumplicidade e prolongamento entre o intérprete e o seu objeto gerador de som”. Por sua vez, o/a bailarino/a também precisa de criar uma relação de proximidade com o espaço de uma forma em que “os seus movimentos se insiram no espaço com a mesma intimidade e a mesma familiaridade com a qual habita o corpo” (Gil, 2001, p. 20). Em suma, tanto a prática de dança, tanto a de música, procura um domínio dos elementos externos para que se tornem parte integrante do esforço para gerar movimento ou som. “As práticas artísticas, sendo incitadas por um desejo criativo e baseadas numa relação de incorporação do artista no médium do seu trabalho, desenvolvem uma capacidade de profunda intensificação sensório-percetiva, a partir dos quais exploram a construção de sentidos e a relação corpo-mundo” (Lima, 2018, p. 119).
Segundo Laban (1978, p.126), o esforço pode ser descrito como uma dinâmica, uma textura, uma cor, uma emoção ou uma atitude. Juntando esta conceção ao pensamento desenvolvido no início deste capítulo, poderá dizer-se que o esforço é simultaneamente funcional e expressivo, ou seja, é responsável pelos usos quantitativo e qualitativo da energia.

TEMA E VARIAÇÃO
é um exercício que tem como objetivo perceber como a poética associada a conceitos influencia formalmente um determinado material musical ou coreográfico.
O “tema e variação” pretende provocar oscilações no esforço, requisitando diferentes qualidades de movimento ou de som, sugeridas pela interpretação poética de diversas palavras. Para isso, é criado um tema, considerado como o conjunto composto por uma frase de movimento e outra de som – complementares. As reinterpretações do tema, estimuladas pelas palavras, dão origem às variações. Geralmente, tanto a frase de movimento, como a de som, são criadas em colaboração entre todos os elementos do coletivo, optando-se por criar uma delas primeiro e a outra em função da primeira. É de interesse que o tema não seja nem muito curto, para que a exploração das variações possa ser aprofundada, nem muito longo, para que possa haver um domínio sobre a sua forma num breve momento de estudo das frases. No que respeita às palavras, normalmente cada elemento sugere um conjunto de palavras, das quais são selecionadas algumas para estimular as variações. Este processo acontece pouco tempo antes do início do exercício para que não haja uma manipulação prévia do tema, já que as variações são geradas através da improvisação, em apenas duas tentativas. Como mencionado anteriormente, a poética da palavra é transformada na qualidade do esforço. Por exemplo, a palavra “ferver” propõe um esforço rápido, flexível e inconstante, enquantoa palavra “algodão” sugere um esforço controlado, leve e suave. Estre processo de tradução parte da capacidade metafórica intrínseca ao processo cognitivo do ser humano, através da qual “é feita a transferência de sentidos, sensações e perceções gerados no domínio experiencial e sensório-somático para o sentido projetado em conceitos linguísticos relativos a domínios conceptuais, abstratos e imaginativos” (Lima, 2018, p.112).
PERSPETIVAS DE FUTURO
Em agosto de 2022, o TETO apresentou no Festival A Estrada uma improvisação estruturada em quatro partes, cada uma regida por uma das ferramentas descritas neste artigo. Esta apresentação funcionou como uma primeira tentativa de transformação do projeto de investigação num objeto performático independente, com a preocupação de prolongar para esse contexto a pesquisa que caracteriza o trabalho do coletivo. Por um lado, a familiaridade das ferramentas previamente exploradas em estúdio permitiu que o grupo se mantivesse em sintonia durante toda a improvisação. Por outro, a vulnerabilidade associada à partilha pública de um material gerado em tempo real trouxe uma camada de imersão no espaço envolvente que aproximou o público dos/as performers. Aqui, é importante salientar que o festival acontece em “vários palcos integrados na paisagem e no ambiente dos lugares que os acolhem, pondo em evidência o potencial da região” (Festival A Estrada, 2022). Por isso, o TETO procurou integrar elementos externos na apresentação, utilizando-os como estímulos na ativação das ferramentas. Por exemplo, a linha de acidentes geográficos e de elevação das árvores na paisagem foi utilizada como linha para o “gráfico”.
Contudo, o material apresentado não refletiu na totalidade a profundidade da investigação, uma vez que o objeto performático não abriu janelas para a mecânica das ferramentas, nem evidenciou a proposta de entendimento uno de conceitos associados às duas linguagens. Consequentemente, o coletivo decidiu operar em duas frentes, dissociando o processo de ativação e desenvolvimento das ferramentas dos possíveis materiais gerados através delas. A nova leva de trabalho procurará criar um formato de workshop para um público especializado em dança ou em música, onde serão partilhadas as ferramentas e testadas as suas amplitudes no confronto com outros conhecimentos. Paralelamente, o TETO utilizará o seu próprio legado de exploração conjunta para criar um objeto artístico que parta do material de investigação mas que não tenha por objetivo refleti-lo explicitamente. Em ambos os casos, o coletivo continuará a jogar entre a teoria e a prática, mantendo-se fiel à procura de uma relação simbiótica entre dança e música.

NOTAS
1 Tradução pela autora: “Na década de 1940, Merce Cunningham e o seu parceiro, o compositor John Cage, desenvolveram um novo conceito radical: a música e a dança poderiam existir de forma independente numa mesma performance. Os movimentos dos/as bailarinos/as deixavam assim de estar sujeitos ao ritmo, ao ambiente e à estrutura musical.”
2 Tradução pela autora: “Nas primeiras improvisações de [Trisha] Brown apenas se ouvia a sua respiração, silêncio e os sons dos seus passos; sem fortes componentes auditivas, o público podia concentrar-se mais nos movimentos do que no acompanhamento.”
3 Tradução pela autora: “Com The show must go on, Jérôme Bel disseca os mecanismos do espetáculo, colocando em palco cerca de vinte performers e um DJ que lança hits dos últimos trinta anos uns atrás dos outros. O coreógrafo joga com as expectativas da performance e com efeitos-espelho entre performers e espectadores.”
4 João Gato integra o coletivo apenas desde março de 2022, tomando o lugar de João Almeida.
5 Tradução pela autora: “Não estás no espaço performativo sozinho/a. Tens o espaço e a tua relação com ele e as tuas relações nele; tens tempo nas tuas mãos para moldar como plasticina, ao marcá-lo com momentos de mais ou de menos atividade; e, em muitos casos, tens também outros improvisadores.”
6 Texto original: “(…) the common need for a system for the organization of time comprehensible to and consistent with the physical and psychological nature of the human being.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Authentic Movement Institute. (2017). Authentic Movement. https://www.authenticmovementinstitute.com/authenticmovement
Borgdorff, H. (2012). The Production of Knowledge in Artistic Research. In H. Borgdorff, The Conflict of the Faculties: Perspectives on Artistic Research and Academia (pp. 140-173). Leiden University Press.
Buckwalter, M. (2010). Composing while dancing: an improviser’s companion. The University of Wisconsin Press.
Carter, C. L. (2000). Improvisation in Dance. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 58(2), 181-190.
Costa, G. (2018). Expressividade na música eletroacústica. In E. Vilela & N. Barros (Ed.), Performances no Contemporâneo (pp. 213-223). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
DeLahunta, S., Clarke, G., Barnard, P. (2011). A conversation about choreographic thinking tools. Journal of Dance & Somatic Practices, 3(1-2), 243-259.
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Leão, G. (2014). Liberdade, acaso e ironia: Isolamento de recursos da Improvisação com potencial formativo em contexto de trabalho inter-artístico (Tese de doutoramento). Universidade de Lisboa.
Lima, C. (2018). Pensamento Transversal: entre um sentido sensoriale um sentido conceptual. In Vilela, E. & Barros, N. (Ed.), Performances no Contemporâneo (pp. 109-138). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
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Zallman, A. (1971). Music and Dance. In M. J. Turner, New Dance: Approaches to Nonliteral Choreography (pp. 71-93). University of Pittsburg Press.

ANEXOS
[ANEXO 1]
PERFORMANCE + EXPOSIÇÃO



[ANEXO 2]
COMPOSIÇÃO INSTANTÂNEA



Registo de vídeo de uma “composição instantânea”
Discussão sobre “composição instantânea”



[ANEXO 3]
GRÁFICO


Gerador de gráfico para leitura coletiva
[ANEXO 4]
MONOTONIA




Registo de vídeo de “monotonia”
[ANEXO 5]
TEMA E VARIAÇÃO





Registo de vídeo de um “tema e variação”
GEOMETRIAS DA SINTONIA
uma investigação sobre ferramentas de improvisação transversais à dança e à música a partir do trabalho do coletivo TETO
Joana Franco
outubro 2022