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Vou gastá-lo mal gasto foi o livro que escrevi numa semana.
Para o Tiago.

Não recomendado à sociedade parte II. c/ Tiago Vieira @ Latoaria

Foi um exercício curioso, o de deixar o corpo escrever (geralmente já cansado, noite dentro). Ao reler o livro passados uns meses, encontro-me mais nas imagens e nas sensações do que nas palavras. Algumas frases fazem-me sorrir: aquele sorrir de quando encontramos um novo sentido numa particular sequência de palavras. Deixo em destaque um excerto de que gosto muito.

*

— Ah, já estava tudo feito! É que não me tinhas dito…
— Pois, esqueci-me… Foi sem querer.
— Claro, eu sei. Mas sabes que vim cá de propósito.
— Não tinha noção disso.
— Está bem.
— Acreditas em mim?
— Sim.
— Obrigado.
— Bom, tenho de ir.
— Sim, vai lá. Não te quero estar a prender…
— Por que porta preferes que saia?
— Podes sair pela da frente, a esta hora já não passa muita gente na rua.
— Faz sentido. (Pausa.) Não podemos passar tanto tempo sem nos vermos.
— Também não quero que isso aconteça, mas nem sempre está nas nossas mãos.
— Bom, diria que está objetivamente nas tuas mãos.
— Nas minhas? Nas tuas também, não?
— Sim, nas minhas também. (Pausa.) Tens razão, nas nossas mãos, nas que temos em comum.
— Às vezes esqueço-me disso, desculpa.
— É normal… Apesar de sabermos que a nossa separação é uma ilusão, a nossa experiência diz-nos o contrário.
— É estranho pensar que na verdade somos apenas matéria energética.
— Os nossos corpos em si não existem. Acho que são só imaginados pelas pessoas.
— A nossa voz também.
— Corremos o risco de que seja a mesma, até…
(Pequeno riso.)
— Depois seria difícil perceber se eu sou eu ou se sou tu.
— Não, a cadência do nosso diálogo faz com que não nos confundamos.
— Mas o nosso discurso é gerado a partir de um mesmo lugar.
— Acho que temos mais poder sobre o nosso discurso do que nos parece.
— Estou a ter dificuldade em concentrar-me.
— Achas que nos estão a perder?
— Outras coisas mais palpáveis podem estar a sobrepor-se a nós.
— Tenho medo. O que nos vai acontecer?
— Não sei, mas não devemos desaparecer.
— É como se ficássemos a dormir?
— Deve ser.
— Então e se fossemos nós a querer ir dormir?
— Podemos experimentar.
— Ficas cá esta noite?
— Fico.
— Quero ir deitar-me já.
— Eu vou contigo.
(Deitam-se.)
— Achas que não foi bem assim que isto tudo aconteceu?
— O que queres dizer com isso?
— Será que nos mudaram as palavras depois de as dizermos?
— Isso é impossível! As palavras que dissemos são as palavras que sempre quisemos dizer. As tuas perguntas são as minhas perguntas e as minhas respostas são as tuas respostas. Construímos isto em conjunto, com as nossas palavras. Tudo o resto, o nosso corpo, este espaço, o tempo, pode não estar a ser bem assim. Mas isso não importa, porque vem tudo das palavras. Agora, quando adormecermos, provavelmente as palavras vão acabar, mas a decisão foi nossa.
— E se nunca mais nos virmos?
— Não te preocupes, vemo-nos quando acordarmos.
— Tens a certeza?
— Sim. Vá, vamos dormir.
(Fecham os olhos e adormecem.)

*