Não era nada disto, o amor


2020

Ao fundo, à direita, duas memórias penduradas por fios de narrativa.
Uma cena bem próxima, à esquerda. Os dois: um móvel e um imóvel.
Ao centro, está um limbo entreaberto.
Veem-se peças no chão. Ouvem-se os passos. Reveem-se as memórias.
Duas figuras habitam, trazem excertos de vida.
Era isto?

Enquanto dupla de criadoras, em Não era nada disto, o amor, interessava-nos o lado visual, a plasticidade e a textura do corpo, do corpo em movimento, da interação entre corpos, da interação entre corpos humanos e corpos “objeto”, dos objetos, do espaço, do som e da articulação de todos estes elementos. Demos importância ao estudo minucioso do gesto, da sua intenção e da sua execução. Ao movimento que comunica, ao movimento que transforma. Ao seu potencial e carga de conteúdo. Quisemos dançar pela ideia, pelo conceito. Recorremos por vezes ao texto, ao lado teatral do movimento e à sugestão de diálogo enquanto ferramenta para a afirmação do lado poético. Procurámos instalar ambientes, evocar espaços mentais, desconfortos e familiaridades, traduzindo-se numa pluralidade de leituras que refletem um universo pessoal e íntimo.

direção e coreografia Joana Franco & Lara Maia • interpretação Jonathan Taylor e Rita Nogueira • música Samuel Dias, com participação de João Almeida, Moisés Viegas e Gonçalo Naia, edição e montagem de Hugo Henriques, letra de Nazaré da Silva • figurino Boglárka Czárán • registo e edição de imagem Joaquim Leal • apoio à residência Escola Superior de Dança, Estúdios Victor Córdon, Centro de Artes de Marvila • estreia Teatro José Lúcio da Silva (Festival Metadança), novembro 2020
Festival Metadança, novembro 2020 (fotografias: Diana Carvalho)
Festival Metadança, novembro 2020 (fotografia: Cláudia Cardoso)
Festival Metadança, novembro 2020 (fotografia: Rute Violante)

O dueto Não era nada disto, o amor tem a sua grande base conceptual na obra literária “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, de Roland Barthes, na qual o autor lista, em fragmentos, ideias, palavras e conceitos que podem emergir na mente do sujeito apaixonado. Barthes organiza intelectualmente estes estados psicológicos (familiares à maioria dos seres humanos), navegando entre a sua experiência própria e um discurso impessoal. Os sentimentos retratados são claramente reconhecidos pelo leitor, mas as questões levantadas recuam à origem do tema: Se o amor é algo comum, será possível encontrar uma linguagem emocional comum? Será que esta ‘linguagem emocional comum’ existe realmente?

Desprovidos de uma hierarquia ou cronologia, estes conceitos (os quais o autor designa de ‘figuras’) são dispostos por ordem alfabética, sendo que a sua relevância é definida pelo próprio leitor. Por isto, caminhamos no sentido de criar algo de natureza ‘acronológica’, ou seja, despojado de cronologia, e não limitado a uma única narrativa. Esta abordagem carrega uma intenção de transversalidade. Esta transversalidade, que no contexto literário se traduz em conceitos facilmente reconhecíveis, levou-nos a uma procura de imagens e situações que, apesar de ambíguas, evocam sensações, definem momentos, acionam memórias. Para além disso, partimos de uma intenção de trabalhar várias ‘figuras’ individualmente, sendo que estas transportam universos particulares. Os conceitos por nós trabalhados materializam-se em fragmentos organizados em cenas/secções que, apesar do encadeamento proposto, a sua ordem não tem implicância direta na peça.

Estúdios Victor Córdon, novembro 2019 (fotografias: Joaquim Leal)
Escola Superior de Dança, março 2020 (fotografias: Joaquim Leal)

Pediram-me um momento. Corei.
Escrever histórias por melhor ano, algo que os anos guardaram.
Mas, e quando só, sozinho, juro! Foi memória tua.
Vejo por festejos simples, egoístas experiências tão acarinhadas, que por sentir minhas, o curioso veio ver partilhar.
Lembro a forma risonha. Sonhei outra cabeça. Faltavas tu.
Disse: chorei-te e dito, sorri.
Ah! Estivesses…
Sei, arrependi sempre. Distanciei experiências passadas. Depois, presenciei muito outro desta relação. Tive um sempre, nunca o feliz.
Que fazer? Um jantar dentro. Pedi: quero agora! Obrigado.
Gosto poder o só mas ela me absorve. Inevitável frente. Lá, estranhos, reencontramo-nos.
Aconteceu ficar assim bonito.


Poema composto pela Joana e pela Lara, a partir de palavras baralhadas de um texto escrito pelo Jonathan.

Merge — The Social Magazine: Nº6 (novembro 2020)