Kaput!

2023

Como resultado de um processo de investigação abraçado por um Mestrado em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais, K! apresenta uma proposta de entendimento que possibilita a representação hipotética de toda a coreografia. Para isso, pede conceitos emprestados à geometria e à matemática para analisar, sintetizar e mapear o corpo em movimento. A apresentação de K! é feita no formato de conferência-performance, permitindo um acesso dirigido ao objeto coreográfico e uma aproximação ao seu interior. Este projeto é igualmente acompanhado por um relatório que explora de forma mais aprofundada os contornos de criação desta proposta de entendimento coreográfico.

Por Joana Franco
Acompanhada por Ângelo Cid Neto, Sara Marita
Acolhida por Com Calma, Escola Superior de Dança, Estúdios Victor Córdon, Companhia de Dança de Almada, Junta de Freguesia de Alfena e Casa Cheia

Centro Cultural de Alfena, abril 2023
Casa Cheia, abril 2023

RELATÓRIO

Resumo Contextualizado por um Mestrado em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais (Escola Superior de Dança), na Especialidade em Coreografia, Kaput! é o resultado de um processo de pesquisa de um entendimento coreográfico propiciador da criação de um solo.

A redefinição do conceito de coreografia é feita a partir da conceção sintética do corpo enquanto uma entidade abstrata, cujas deslocações espaciais se tornam unidades para a composição coreográfica, resultante de processos combinatórios provenientes da matemática. Daqui, surge uma proposta que pretende conter a ideia de ‘toda a coreografia’, e, em consequência, um protótipo da sua materialização. Deste modo, é criado o termo ‘objeto coreográfico’, para caracterizar Kaput! como objeto artístico, e é proposto o formato de conferência-performance, para o apresentar a um público.

Estimulado, inicialmente, por uma elaboração temática construída em resposta à narrativa da peça de teatro musical Little Shop of Horrors, o processo de criação de Kaput! foi-se transformando numa investigação sobre a própria matéria coreográfica, espoletada
pela procura de uma compatibilidade entre as intenções de criação e os materiais explorados em estúdio. A postura analítica e a observação lógica que pautaram esse processo investigativo, cada vez mais distanciado do estúdio, permitiram o estabelecimento de condições de criação coreográfica particulares ao projeto, fundamentadas por premissas específicas de definição de corpo, de movimento e de coreografia e potenciadas por um mecanismo de composição coreográfica quase autónomo. Por fim, já de regresso ao estúdio, a fase final de incorporação dos materiais gerados focou-se, sobretudo, na transferência direta desses conceitos para a consciência do corpo e experiência de movimento, bem como nos mecanismos utilizados nesse transporte.

As apresentações de Kaput!, dirigidas à partilha, não só do objeto coreográfico, mas também da viagem de criação, integraram um momento de exposição verbal e ilustrativa, um outro de ativação da coreografia e um último de conversa com o público.

Palavras-chave corpo, movimento, coreografia, matemática

Um protótipo de toda a coreografia

K! é um protótipo de toda a coreografia. Ou seja, é uma proposta de materialização coreográfica sustentada por uma definição muito precisa de coreografia, que fui formulando ao longo do processo de trabalho. Esta definição parte do entendimento abstrato e geométrico do corpo e do movimento, utilizando o ponto como unidade de localização e referência. Desta forma, um corpo é mapeado e definido por um conjunto específico de pontos que adotam um conjunto específico de relações entre eles. Já um movimento é a transição entre quaisquer duas dessas relações entre pontos. Como resultado, a coreografia é o conjunto de todas as possibilidades de sequencialização, de todas as possíveis transições, entre todas as relações de pontos do corpo.

K! é protótipo porque, na impossibilidade de chegar a esta coreografia total, foquei-me em apenas 3 pontos do corpo – as extremidades do braço esquerdo, do braço direito e da perna direita – e em 3 relações espaciais desses pontos com o resto do corpo – uma posição neutra, uma aberta e outra cruzada. Das combinações destas premissas, surgiram 18 possíveis relações espaciais entre as partes do corpo, ou seja, 18 posições, e 324 possíveis transições entre elas, ou seja, 324 movimentos. Para compor a coreografia, ordenei todos os movimentos numa sequência contínua, onde cada um surge apenas uma vez.

Esta coreografia K! foi materializada através de um processo de incorporação. Este pressupôs, por um lado, a memorização da composição de cada movimento, bem como da sua ordem na sequência coreográfica; e, por outro, a transferência dos entendimentos de movimento e de corpo particulares a K! para a minha consciência cinestésica. Ao longo do processo de incorporação, fui criando diversos mecanismos que me auxiliaram na memorização da sequência coreográfica, como a sua divisão em secções, a anulação momentânea dos membros que, em determinados movimentos, não alteravam a sua localização no espaço, ou associações imagéticas e narrativas a pequenos grupos de movimentos. Outro mecanismo muito importante para a incorporação da coreografia foi a criação de um gráfico que condensava as combinações das trajetórias dos três membros, servindo de partitura para a aprendizagem dos movimentos.

De forma a ser apresentado como objeto artístico, K! é entendido como um objeto coreográfico, em vez de, por exemplo, uma peça de dança, uma obra coreográfica ou um espetáculo. Este termo vem abraçar o caráter fixo, sólido, permanente da coreografia proposta, bem como a sua menoridade e densidade. Em oposição a esta ‘objectualidade’, criei uma envolvência em formato de conferência-performance para, por um lado, alargar a menoridade às dimensões espaciais e temporais de um palco e, por outro, diluir a densidade através de uma aproximação ao seu interior. As apresentações do projeto englobavam, portanto, uma exposição verbal e ilustrativa do processo criativo de K!, a ativação da coreografia e uma conversa com o público.

Na continuação de K!, surge o relatório final de mestrado. À imagem da coreografia, é composto por 171 capítulos-fragmento,
organizados linearmente numa lógica interna de progressão de assuntos e não linearmente através de propostas de interligação entre ideias semelhantes em diferentes zonas do relatório. O principal motivo para esta fragmentação foi a necessidade de oscilação entre pontos de vista, modos de escrita e temáticas para reflexão. Foi na articulação entre uma escrita que fixa os contornos do objeto e outra que propõe aberturas a partir desses mesmos contornos, que encontrei um relatório coerente com o projeto.

O processo de criação de K! foi marcado por deslocações a lugares desconhecidos, geralmente amparadas por tentativas de os tornar familiares. Acreditando, ingenuamente talvez, na possibilidade de conhecimento total de um assunto, decidi envolver-me numa ficção de que seria possível formular uma proposta que condensasse toda a coreografia. Contudo, ainda que encare este projeto como um lugar inofensivo de pesquisa artística pessoal, não posso deixar de sentir uma certa preocupação com o perigo do todo, quando não admite espaço para o que o transborda. Quero, por isso, deixar claro que as afirmações K! não se sobrepõem a quaisquer outras e que a inflexibilidade dos contornos que criei reverbera apenas dentro do projeto. Fico com um desafio:
como posso gerar vida coreográfica a partir da morte por classificação?