Um olhar sobre corpos dançantes e corpos escultóricos

Linhas.
Linhas coloridas horizontais (telas). Linhas coloridas verticais (bailarinos).
Cruzamentos de linhas.

Composição.
Composições com (várias) posições. Aleatórias.
A todos os instantes há uma nova relação entre as linhas que se desenham no espaço.

Mobilidade.
Os bailarinos de Cunningham são também corpos escultóricos.
As telas de Stella são também corpos móveis.

(Scramble, Merce Cunningham e Frank Stella, 1967).

A carne.
Há um (sozinho) corpo humano que não é mais humano, que volta a um estado anterior ao primitivo.
É músculo e pele.
A experiência física daquele seu espaço, limitado ao assento mas aberto a toda a verticalidade, manifesta-se nesse músculo e nessa pele. Extravasa-os pela voz.
O corpo humanizado dá lugar ao corpo plástico, irreconhecível.

O ferro.
Negro e frio. Austero e seguro. É posto de controlo mas também balão de ar quente. Frio e quente.
Faz um convite impossível: aqueles assentos não são para o nosso corpo.

A verticalidade.
A estrutura de ferro procura a verticalidade em quase todos os seus elementos. Os altos tripés, as esferas quase flutuantes, ambos se elevam. Mas os assentos pendem no sentido contrário, no sentido da Terra. Porque têm dois corpos que não resistem à força da gravidade (um está mesmo lá, o outro imagina-se).

Um único corpo.
De carne e de ferro.
Uma existência contínua, que não vem de nenhum lado, não vai para nenhum lado.
O ferro é a casa, a pele é a chave da porta.
Mas há uma janela que permanece aberta: sobra um assento.

O duplo.
É possível produzir duas estruturas de ferro iguais. Não é possível existirem dois corpos humanos iguais.

(Comer o coração, Rui Chafes e Vera Mantero, 2004)

Desembrulhar.
Um cubo. Abrem-se as portas para dentro e para fora do cubo.
A dança de abrir e fechar a caixa: a escultura dança com as suas articulações.
Abrem-se e fecham-se vazios.

O vazio.
A caixa é feita de madeira, de aço, de espelho e de vazio.
Fora da caixa é o mundo, dentro da caixa é o vazio. Deixar o mundo para ir experimentar o vazio.
No vazio, tudo pode acontecer. Um vazio encaixilhado: vai daqui até ali.
O vazio atrai o corpo.

Prolongamento do vazio.
O espelho prolonga o espaço. Duplica o espaço e os corpos.
O vazio do espelho não é real. A imagem do corpo relaciona-se com a imagem do vazio.

Convite.
Descobrir novos vazios. Onde cabe o corpo? Como encaixar o corpo? A caixa precisa de corpos a criar espaço.

Os planos.
A escultura cria um espaço, planos verticais e horizontais. Os corpos são planos oblíquos.

Os arquitetos.
Os bailarinos são arquitetos: modificam o espaço. Os seus corpos relacionam-se com os espaços de vazio e os espaços de caixa. Vestidos de preto, recortam o espaço do seu corpo na caixa. A pele, cromaticamente semelhante à madeira, é o prolongamento orgânico da caixa. Fragmentos de corpos.

Brincar.
Os bailarinos estão presos ao que já conhecem da escultura. É fácil esquecerem-se da curiosidade.
As crianças são os melhores arquitetos.

(Caixa para guardar o vazio, Fernanda Fragateiro e Aldara Bizarro, 2005)

23 de março de 2021