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Resumo Contextualizado por um Mestrado em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais (Escola Superior de Dança), na Especialidade em Coreografia, Kaput! é o resultado de um processo de pesquisa de um entendimento coreográfico propiciador da criação de um solo.

A redefinição do conceito de coreografia é feita a partir da conceção sintética do corpo enquanto uma entidade abstrata, cujas deslocações espaciais se tornam unidades para a composição coreográfica, resultante de processos combinatórios provenientes da matemática. Daqui, surge uma proposta que pretende conter a ideia de ‘toda a coreografia’, e, em consequência, um protótipo da sua materialização. Deste modo, é criado o termo ‘objeto coreográfico’, para caracterizar Kaput! como objeto artístico, e é proposto o formato de conferência-performance, para o apresentar a um público.

Estimulado, inicialmente, por uma elaboração temática construída em resposta à narrativa da peça de teatro musical Little Shop of Horrors, o processo de criação de Kaput! foi-se transformando numa investigação sobre a própria matéria coreográfica, espoletada pela procura de uma compatibilidade entre as intenções de criação e os materiais explorados em estúdio. A postura analítica e a observação lógica que pautaram esse processo investigativo, cada vez mais distanciado do estúdio, permitiram o estabelecimento de condições de criação coreográfica particulares ao projeto, fundamentadas por premissas específicas de definição de corpo, de movimento e de coreografia e potenciadas por um mecanismo de composição coreográfica quase autónomo. Por fim, já de regresso ao estúdio, a fase final de incorporação dos materiais gerados focou-se, sobretudo, na transferência direta desses conceitos para a consciência do corpo e experiência de movimento, bem como nos mecanismos utilizados nesse transporte.

As apresentações de Kaput!, dirigidas à partilha, não só do objeto coreográfico, mas também da viagem de criação, integraram um momento de exposição verbal e ilustrativa, um outro de ativação da coreografia e um último de conversa com o público.

Palavras-chave corpo, movimento, coreografia, matemática

K! é um protótipo de toda a coreografia. Ou seja, é uma proposta de materialização coreográfica sustentada por uma definição muito precisa de coreografia, que fui formulando ao longo do processo de trabalho. Esta definição parte do entendimento abstrato e geométrico do corpo e do movimento, utilizando o ponto como unidade de localização e referência. Desta forma, um corpo é mapeado e definido por um conjunto específico de pontos que adotam um conjunto específico de relações entre eles. Já um movimento é a transição entre quaisquer duas dessas relações entre pontos. Como resultado, a coreografia é o conjunto de todas as possibilidades de sequencialização, de todas as possíveis transições, entre todas as relações de pontos do corpo.

K! é protótipo porque, na impossibilidade de chegar a esta coreografia total, foquei-me em apenas 3 pontos do corpo – as extremidades do braço esquerdo, do braço direito e da perna direita – e em 3 relações espaciais desses pontos com o resto do corpo – uma posição neutra, uma aberta e outra cruzada. Das combinações destas premissas, surgiram 18 possíveis relações espaciais entre as partes do corpo, ou seja, 18 posições, e 324 possíveis transições entre elas, ou seja, 324 movimentos. Para compor a coreografia, ordenei todos os movimentos numa sequência contínua, onde cada um surge apenas uma vez.

Esta coreografia K! foi materializada através de um processo de incorporação. Este pressupôs, por um lado, a memorização da composição de cada movimento, bem como da sua ordem na sequência coreográfica; e, por outro, a transferência dos entendimentos de movimento e de corpo particulares a K! para a minha consciência cinestésica. Ao longo do processo de incorporação, fui criando diversos mecanismos que me auxiliaram na memorização da sequência coreográfica, como a sua divisão em secções, a anulação momentânea dos membros que, em determinados movimentos, não alteravam a sua localização no espaço, ou associações imagéticas e narrativas a pequenos grupos de movimentos. Outro mecanismo muito importante para a incorporação da coreografia foi a criação de um gráfico que condensava as combinações das trajetórias dos três membros, servindo de partitura para a aprendizagem dos movimentos.

De forma a ser apresentado como objeto artístico, K! é entendido como um objeto coreográfico, em vez de, por exemplo, uma peça de dança, uma obra coreográfica ou um espetáculo. Este termo vem abraçar o caráter fixo, sólido, permanente da coreografia proposta, bem como a sua menoridade e densidade. Em oposição a esta ‘objectualidade’, criei uma envolvência em formato de conferência-performance para, por um lado, alargar a menoridade às dimensões espaciais e temporais de um palco e, por outro, diluir a densidade através de uma aproximação ao seu interior. As apresentações do projeto englobavam, portanto, uma exposição verbal e ilustrativa do processo criativo de K!, a ativação da coreografia e uma conversa com o público.

Na continuação de K!, surge o relatório final de mestrado. À imagem da coreografia, é composto por 171 capítulos-fragmento, organizados linearmente numa lógica interna de progressão de assuntos e não linearmente através de propostas de interligação entre ideias semelhantes em diferentes zonas do relatório. O principal motivo para esta fragmentação foi a necessidade de oscilação entre pontos de vista, modos de escrita e temáticas para reflexão. Foi na articulação entre uma escrita que fixa os contornos do objeto e outra que propõe aberturas a partir desses mesmos contornos, que encontrei um relatório coerente com o projeto.

O processo de criação de K! foi marcado por deslocações a lugares desconhecidos, geralmente amparadas por tentativas de os tornar familiares. Acreditando, ingenuamente talvez, na possibilidade de conhecimento total de um assunto, decidi envolver-me numa ficção de que seria possível formular uma proposta que condensasse toda a coreografia. Contudo, ainda que encare este projeto como um lugar inofensivo de pesquisa artística pessoal, não posso deixar de sentir uma certa preocupação com o perigo do todo, quando não admite espaço para o que o transborda. Quero, por isso, deixar claro que as afirmações K! não se sobrepõem a quaisquer outras e que a inflexibilidade dos contornos que criei reverbera apenas dentro do projeto. Fico com um desafio: como posso gerar vida coreográfica a partir da morte por classificação?

30 de novembro de 2023

ver também ⟶ Kaput! (Coreografia e x p a n d i d a)