Kaput! // Textos diarísticos
13 de setembro de 2022
O que vai na minha cabeça?
14 de setembro de 2022
O K! é um solo e é um trabalho a solo e sou eu e é o meu cérebro e é a minha realidade com um pouco da minha ficção e é cinzento e é frio e é de volumes geométricos com interior de carne viva. É pós-humano, transumano, ciborgue, mutante, hiper-real, distópico, apocalíptico e misantropo. Não é uma narrativa, não tem propriamente um discurso, não sei se terá um início e um fim. Eu sou a personagem principal, sem ser personagem, nem eu própria, nem um bicho, nem a narradora. Eu sou a imagem, eu sou o espelho, eu sou a forma, eu sou a escultura da qual é feito cinema. Eu sou uma parte do K! e o K! é uma parte de mim. O resto é do mundo. De um mundo que não sei se é real ou ficção. O K! tem a forma do meu pensamento. O K! é verdadeiro porque tem a forma do meu pensamento. Eu quero ver a forma do meu pensamento. Eu não me importo que os outros vejam a forma do meu pensamento. Eu não sei se será visível que é a forma do meu pensamento. Não quer dizer que eu pense sempre assim de forma cinzenta. Mas o K! é sobre os meus pensamentos cinzentos. É sobre o desejo de ser máquina de pensamento. É sobre o prazer de pensar só por pensar. É sobre o prazer de pensar numa forma de não ser o que se é, sabendo que não se vai deixar de ser o que se é. É sobre mim mas também sobre os outros. E sobre todos nós em conjunto. E sobre a nossa forma de existir. No corpo e para além dele. É sobre os desejos que não se compreendem. É sobre achar que se é algo mais do que se é. É sobre ser direito num mundo torto e sobre ser torto num mundo direito. Eu sou torta por fora e direita por dentro. Eu tento fazer coisas que são direitas por fora e por dentro. Eu não sei fazer dança torta por dentro. Eu não sei se sei fazer dança. Eu não sei se quero fazer dança. Eu estou à procura da minha dança. Eu sinto que o K! tem de ser feito de uma outra dança. Da minha pós-dança. Importam-me os corpos e o que fazemos com eles. Os gestos e nuances ao quais chamo códigos. Corpo marioneta do universo interior. Eu quero entender esse código. Cada gesto como se fosse uma letra. Estamos habituados a escrever palavras e a organizações frásicas prosaicas. Tenho pensado que fazer arte é como fazer poesia. A dança é poesia. K! é uma poesia disfarçada de prosa. Isto é tudo uma fantasia e um desejo muito grande de querer lá chegar, sem saber como lá chegar. Não muito diferente do desejo do pós-humano. Para já o K! são imagens. São sequências de imagens escultóricas. (Sei que já falei de escultura e de cinema neste texto. A minha dança é como se fosse escultura e cinema.) É um deserto cinzento de horizonte infinito, com uma árvore da qual só lhe vejo o tronco esguio e negro, em silêncio total e com um corpo horizontal em rotação eterna. É um corpo todo aos bocadinhos num balde verde, a ser espremido como panos molhados e depois seco ao sol como o sargaço. É o interior de uma boca sem dono, com o maxilar a fechar cada vez mais até à escuridão total. É um corpo tão fraco e frágil, que nem é bebé nem idoso e que se aproxima lentamente a tentar dizer alguma coisa que não percebo. É um suicídio de um robô. É um relvado sintético que parece mesmo relva real. É isto mas também pode não ser nada disto. K! é talvez o último. K! é talvez o primeiro. K! é uma certeza a apontar para o erro.
17 de setembro de 2022
Porque é que o ‘significado’ de uma sequência coreográfica pode variar tanto de acordo com o contexto em que é inserida, ou seja, a música, o figurino, a luz e o cenário utilizados? Porque é que a dança parece a mais frágil das linguagens? Como posso tirar partido dessa fragilidade? Interessa-me essa fragilidade? Como trabalho esses elementos em conjunto para conseguir que o objeto que produzem transmita aquilo que eu quero? Como escolher a dança certa se vai tudo dar mais ou menos ao mesmo? Como posso ter a certeza de que o movimento que fiz anteriormente é o mesmo que repito uma segunda vez? Como aceito que tanto faz? Como entendo que qualquer coisa pode originar qualquer coisa e que depende tudo das minhas escolhas? Porque preciso de uma justificação para o movimento? Porque só me quero mexer se a ação for necessária? Porque sinto que já se fez muita dança? Porque sinto que fazer mais dança é gastar ainda mais a dança? Como desvendo esta ideia de dança que sei que está cá dentro mas que não a apanho? Como respondo a estas perguntas com dança? É com dança que se responde a estas perguntas? Como utilizo o corpo como matéria? Como tiro partido de não me sentir capaz de ser matéria do meu objeto? Tenho de me obrigar a dançar? Tenho de dançar como sempre dancei? Preciso do meu corpo para dançar? Posso usar outras matérias para fazer a minha dança existir? Consigo usar várias matérias sendo um solo na mesma? Porque quero fazer um solo? Porque gosto da ideia de solo? Quero falar da minha relação com a dança? Como falo de dança com dança?
21 de setembro de 2022
Tinha tudo à mão. O banco de movimentos que criei tinha a matéria – adoro todos aqueles fragmentos! Fui toda contente dançar e criar. Mas cheguei ao fim e os movimentos que outrora faziam sentido, isolados, estão agora todos misturados e a comerem-se uns aos outros. Estiquei a corda. Adicionei lixo para poder dizer que fiz dança. E agora já não os entendo como entendia. Já não são especiais. Apetece-me que eles possam viver no seu lugar especial. Apenas no fragmento de dança, no meio de tudo o resto que não é dança. Que pontuem uma outra coisa muito real e muito banal e que entrem K! dentro como se fossem pérolas negras misteriosas. Usar a dança como se fosse um bem escasso (ela é um bem escasso). Não desperdiçar. Poupar. Gastar só o necessário. Isto deixa-me uma dúvida grande: se só vou usar bocadinhos de dança, de que é feito tudo o resto? Apetece-me que seja feito de realidade. Tenho de pensar…
28 de outubro de 2022
Um dos meus espaços de trabalho para a criação de K! era uma espécie de estúdio no plano do pensamento onde formulava as ideias para a peça. Desde o início do processo que as palavras vinham espreitar à janela; e eu sempre a fechar a cortina. Cá dentro só se fazia dança e a linguagem das palavras não era matéria de dança. Contudo, houve um momento em que me apercebi que K! era um espetáculo de dança e que os espetáculos de dança são feitos de muitas outras coisas para além da dança. Abriu-se uma frincha para a palavra. Imaginava-a escrita, desenhada, projetada, ou seja, no espaço, a acompanhar a dança. Tinha várias hipóteses: escrever e decorar, pensar e improvisar, compor e declamar. Nenhum destes tipos de discurso me agradava, ou pela desonestidade, ou pela imprevisibilidade, ou pela inconcretude. Por momentos, voltei a arrumar a palavra do lado de fora do estúdio e a focar-me na dança. Dancei muito; improvisei, compus e decompus, mas nenhum movimento, nenhum gesto, nenhuma figura conseguia guardar as minhas ideias. Voltava sempre ao caderno para escrever. A palavra tornava-se inevitável. E eu a gostar cada vez mais de entrar e sair da dança; de abrir portas para outras esferas em que a palavra era possível. Mas a voltar sempre à dança, porque era esse o meu objeto de interesse.
4 de novembro de 2022
K! começa quando parece que ainda não começou. Entro em palco e dirijo-me ao público para o acolher. Quero que seja claro que, pelo menos naquele momento, em que parece que ainda não é espetáculo, partilhamos todos o mesmo tempo e o mesmo espaço. Não existe uma separação entre o palco e a plateia, ou entre o objeto artístico e a realidade. No seguimento disso, gostava de ser eu a comunicar todas as regras para assistir ao espetáculo: tanto as do espaço de acolhimento (caso haja), como as minhas. Serei eu a comunicar o típico ‘por favor, desliguem os telemóveis’ e o ‘é proibida a captação de imagem ou de som’. Aproveito esta última regra para relacionar o possível interesse do público em captar imagens, com o meu próprio interesse em captar imagens, isto porque, em princípio, terei uma câmara a gravar o espetáculo como forma de documentação. E assim começaria a primeira secção propriamente dita do espetáculo – uma reflexão sobre a documentação de dança. Para que serve? O vídeo é o melhor meio? Posso interferir na gravação de um modo em que não registe o espetáculo todo? Posso tornar o público testemunha da falibilidade do vídeo como documentação de dança? Posso apresentar outras propostas? Posso sugerir outras formas de documentação ao público? Uma hipótese: projetar na tela a gravação em tempo real e fazer algo fora desse frame. Outra hipótese: relembrar o público que pode tirar notas ou fazer esquemas no verso do bilhete. Nova possibilidade: se o meu corpo for um dos materiais de documentação, poderá ser feito um paralelo mais claro com a dança. Neste caso, a documentação da dança existiria antes da própria dança e, através da minha ação, tornar-se-ia dança. Esta perspetiva pode revelar igualmente as minhas intenções de querer realizar a dança noutros planos, como por exemplo o do pensamento, retirando-a da matéria-corpo e, por isso, propondo uma catástrofe coreográfica. Idealmente, a intensidade do final deste momento, introduz um outro, bastante mais calmo: uma espécie de novo início.