30 de janeiro de 2021

[cinco capítulos de ENTRAR]

A arte é o oposto da sociedade.
Quais são os pontos comuns entre arte e sociedade?
O que é o oposto da sociedade?
A sociedade é superficial, é um ‘deixar andar’.
A sociedade não é livre.
O que é a arte?
A arte é um produto da sociedade.
A arte é pergunta e pensamento.
A arte é livre.
Como é possível dizer o que é a arte?

Se não existisse arte…
Seria possível um mundo sem arte?
A arte existiria na mesma, mas não seria conceito.
Ficaria tudo igual, mas seríamos menos felizes.
Seríamos animais.
Se não existisse arte, eu precisava…
De um modo de expressão e entretenimento.
De outros estímulos.
De um escape.
De viver num refúgio.
Da natureza.
Algo que fosse isto tudo ao mesmo tempo.

Um quadro bom no meio de quadros maus acaba por se transformar num mau quadro.
E um quadro mau no meio de quadros bons acaba por se transformar num bom quadro.
O que é um quadro bom?
O que é um quadro mau?
[+ + + - +] = +
[- + - - -] = -
O todo e a parte.
A maioria categoriza o grupo.
Não olhar só para o geral: não deixar que um quadro bom se torne um quadro mau.
O mau (feio) tem algo de incrível.

A arte está em todo o lado?
Qualquer pessoa é artista?
A arte não está em todo o lado.
Nem qualquer pessoa é artista.
Mas a arte pode estar em todo o lado.
E qualquer pessoa pode ser artista.
Eu defino algo como arte.
Um público que torna a arte, arte.
Eu defino-me como artista.
Ser artista é um caminho.
Qualquer pessoa pode criar.
A criatividade não existe só no meio artístico.

Se fossemos um coletivo de criativos/artistas, gostaríamos de comunicar:
O quê? Como? Porquê?
Um momento de partilha. Uma descoberta do momento. Um coletivo participativo.
Ou um cruzamento da arte com as rotinas. Um acordar da sociedade.
Ou um debruçar sobre o íntimo, mas de uma forma coletiva.
Ou um mapear dos pontos comuns.
Ou um ir à procura. Um descobrir pelo caminho.

15 de fevereiro de 2021

[variação 1 do poema do Pedro — nos interstícios]

(Estou aqui, metido dentro de uma curva.)
      Estou na tangente.
(Estou quase imóvel.)
      Sou corpo.
(Não penso.)
      Estou.
(A melhor forma de pensar é a caminhar, em linha recta, ou a divagar em voz alta.)
      Substituo as curvas cerebrais pelos gestos do corpo.
(Os caminhos entendem o meu pensamento.)
      Curvam-se as linhas à minha passagem.
(Assumo uma visão de longo prazo, mas com a intensidade de cada momento.)
      Sei o infinito da reta, mas só existo em cada ponto.
(Fernando Pessoa escreveu: "quem tem alma não tem calma".)
      E "sou minha própria paisagem".
(Aqui estou, com a alma em cada detalhe e o coração a iluminar o nevoeiro.)
      Vejo que aqui estou, com os olhos de me ver a mim.
(Não saio da curva. Nem enceno partidas.)
      Permaneço em tangente.
(Estou.)

17 de fevereiro de 2021

[variação 2 do poema do Pedro — universos paralelos]

O aqui de cada aqui

Estou em linha mas assumo uma curva de partidas
Meu longo pensamento escreveu dentro da curva
Tem voz o nevoeiro metido em cada momento de calma
A intensidade de alma a iluminar os caminhos

Estou quase melhor a divagar com Fernando Pessoa
A caminhar imóvel
Estou: penso [ou] não estou: saio

Enceno e entendem
A alma não é reta nem forma alta
Quem não pensar com o coração em detalhe
Tem uma visão a prazo

20 de fevereiro de 2021

Os livros querem-se no chão.
Para se ir tropeçando neles.

22 de fevereiro de 2021

Adormeço sob a luz da Lua.
Penso no Vento, no Mar e no Sol.
Ao final do dia, uma gruta de metal negro virada contra o Mar divide o Sol em dois.
Sol-luz, Sol-calor.
Penso na escultura do Eduardo Chillida, que penteia o Vento.
O Vento divide-me em dois.
Eu-dentro, Eu-fora.
Move-se a Lua à volta da Terra e a Terra à volta do Sol.
Viajo a noite toda. Mesmo parada, não paro de viajar.

6 de março de 2021

[sobre espaços culturais]

gosto da sensação de espaço “sagrado”.
das pessoas que entram comigo.
das pessoas que já lá estão quando eu entro.
gosto do momento de passar a porta (ou o portal).
gosto de sentir que é espaço comum.
gosto do tempo de espera.
do tempo pré-acontecimento.
da deslocação até ao acontecimento.
gosto do pós-acontecimento.
gosto de quando há um eco nas pessoas.
de quando há um eco partilhado entre as pessoas.
não gosto tanto quando me vou embora sem ficar no eco.
gostava que houvesse ainda mais o culto do eco no espaço.
gosto quando o espaço é casa para a arte.
mais do que casa para mim.
gosto de sentir que não faço parte do espaço.
não gosto de sentir que não faço parte do espaço.
não gosto de já não estar num espaço desses há muito tempo.

[Pós reflexão: neste texto não falei nunca da experiência da obra de arte. Talvez porque isso já não faça parte do espaço institucional. É outro espaço, outro universo. Durante esse tempo, não estou no espaço, nem no tempo, nem com as pessoas com quem estive até esse momento (e no momento a seguir)]

8 de março de 2021

[abrir dois parêntesis e não se perder]

Estou preocupada com a possibilidade de este texto ser roubado. Tranquiliza-me saber que as palavras são de todos. Formalmente pouco valem.
Proponho um inverso de parafrasear: moldar os meus conceitos com palavras escolhidas por alguém. Registar a minha realidade com a camada da realidade do outro.
Um manifesto.

Pensar-me como dispositivo do real.
Cruzar o meu mundo com o mundo fora de mim.
Mundo fora como laboratório de experiências.
Muscular o meu próprio sistema de análise.
Ter um real construído. Ficcionado mas com matéria do real.
Criá-lo entre a perceção e a intuição.
Depois, tornar o invisível visível.

Abraçar o convívio de coisas sem nome. Exercício que pertence à imaginação.
Ver algo escondido no interior dos frutos. Diluir a fronteira.
Não cair na rotina do gesto.

Investir nas imagens. Imagens dos outros. Imagens compósitas.
Possuir um arquivo de imagens. Sonhar para as converter.
Comer imagens para alimentar o imaginário.

[A partir da conversa com Pedro Senna Nunes, organizada pela Vo'arte]

13 de março de 2021

[Provavelmente ninguém paga bilhete]

Ninguém verdadeiramente o vê.
Há um único espectador: ele próprio.
Podemos, no entanto, olhar para ele.
Veremos ações – possível janela para o pensamento.
Ação (dele e nossa) e pensamento (dele e só dele).
Conhecemos frações.

Se é criação, é das circunstâncias da vida.
E está ainda no princípio.
Um sem-título, aberto.

Habitam-lhe consequências da consciência.
No campo das coisas imateriais.
Tangíveis ao pensamento e não tanto à ação.

Porta fechada e ficamos todos do lado de fora.
Inevitavelmente.

[Madeira de pereira velha]

Existe, simples, na rua.

Por sorte, às vezes em pequenas galerias.
Algures na linha de Sintra, entre mais ou menos movimento.

É habitado pela escolha do som do silêncio.
Muito raramente, convive com um zumbido cinzento.
Não é estanque ao som de fora, que apenas está lá.
O corpo é música e, quando muito, é o corpo que habita a arte.

Convida para a primeira fila as pessoas a quem errou.
É obra delas.

Espera que vão.
Espera que mude.
Espera que não.

16 de março de 2021

[o banho]

Que banho é este,
Que lava e leva?
Livra!
Que saio suja na mesma.

18 de março de 2021

Comecei o "Todos os Nomes", de Saramago. Vou ao baralho de cartas e escolho uma para marcador. Passo por algumas e, mal vejo o rei de paus, sei que é essa que quero. Continuo a leitura. "Fosse o subchefe instruído nos métodos perscrutadores da psicologia aplicada, e em menos de um ai ter-se-ia vindo abaixo o enganoso discurso do Sr. José, como um castelo de cartas onde tivesse falhado o pé ao rei de espadas, ou como uma pessoa atreita a tonturas a quem tivessem sacudido o escadote". Errei na carta.

23 de março de 2021

[um olhar sobre corpos dançantes e corpos escultóricos]

Linhas.
Linhas coloridas horizontais (telas). Linhas coloridas verticais (bailarinos).
Cruzamentos de linhas.

Composição.
Composições com (várias) posições. Aleatórias.
A todos os instantes há uma nova relação entre as linhas que se desenham no espaço.

Mobilidade.
Os bailarinos de Cunningham são também corpos escultóricos.
As telas de Stella são também corpos móveis.

(Scramble, Merce Cunningham e Frank Stella, 1967).

A carne.
Há um (sozinho) corpo humano que não é mais humano, que volta a um estado anterior ao primitivo.
É músculo e pele.
A experiência física daquele seu espaço, limitado ao assento mas aberto a toda a verticalidade, manifesta-se nesse músculo e nessa pele. Extravasa-os pela voz.
O corpo humanizado dá lugar ao corpo plástico, irreconhecível.

O ferro.
Negro e frio. Austero e seguro. É posto de controlo mas também balão de ar quente. Frio e quente.
Faz um convite impossível: aqueles assentos não são para o nosso corpo.

A verticalidade.
A estrutura de ferro procura a verticalidade em quase todos os seus elementos. Os altos tripés, as esferas quase flutuantes, ambos se elevam. Mas os assentos pendem no sentido contrário, no sentido da Terra. Porque têm dois corpos que não resistem à força da gravidade (um está mesmo lá, o outro imagina-se).

Um único corpo.
De carne e de ferro.
Uma existência contínua, que não vem de nenhum lado, não vai para nenhum lado.
O ferro é a casa, a pele é a chave da porta.
Mas há uma janela que permanece aberta: sobra um assento.

O duplo.
É possível produzir duas estruturas de ferro iguais. Não é possível existirem dois corpos humanos iguais.

(Comer o coração, Rui Chafes e Vera Mantero, 2004)

Desembrulhar.
Um cubo. Abrem-se as portas para dentro e para fora do cubo.
A dança de abrir e fechar a caixa: a escultura dança com as suas articulações.
Abrem-se e fecham-se vazios.

O vazio.
A caixa é feita de madeira, de aço, de espelho e de vazio.
Fora da caixa é o mundo, dentro da caixa é o vazio. Deixar o mundo para ir experimentar o vazio.
No vazio, tudo pode acontecer. Um vazio encaixilhado: vai daqui até ali.
O vazio atrai o corpo.

Prolongamento do vazio.
O espelho prolonga o espaço. Duplica o espaço e os corpos.
O vazio do espelho não é real. A imagem do corpo relaciona-se com a imagem do vazio.

Convite.
Descobrir novos vazios. Onde cabe o corpo? Como encaixar o corpo? A caixa precisa de corpos a criar espaço.

Os planos.
A escultura cria um espaço, planos verticais e horizontais. Os corpos são planos oblíquos.

Os arquitetos.
Os bailarinos são arquitetos: modificam o espaço. Os seus corpos relacionam-se com os espaços de vazio e os espaços de caixa. Vestidos de preto, recortam o espaço do seu corpo na caixa. A pele, cromaticamente semelhante à madeira, é o prolongamento orgânico da caixa. Fragmentos de corpos.

Brincar.
Os bailarinos estão presos ao que já conhecem da escultura. É fácil esquecerem-se da curiosidade.
As crianças são os melhores arquitetos.

(Caixa para guardar o vazio, Fernanda Fragateiro e Aldara Bizarro, 2005)

10 de abril de 2021

[um manifesto]

1.

Querer
Querer
Querer
Querer
Não querer
Querer
Não querer
Querer
Querer

2.

Ir
Não ir
Ir
Não ir
Ir
Não ir
Ir
Não ir

3.

Um
Dois
Três
Quatrocincoseis
Sete
Oitonove
Dez
Dez
Dez
Onzedozetrezecatorzedesasseisvintemil

4.

Isto
Isto e aquilo
Isto e aquilo e mais isto
E mais isto e mais aquilo
E mais

5.

O que está dentro está dentro
O que está fora está fora
E o que está dentro é o dentro
E o que está fora é o fora
E o que está dentro é o fora
E o que está fora é o dentro
E o dentro é o fora
E o fora é o dentro

6.

Talvez
Talvez
Talvez
Talvez
Talvez
Talvez
Talvez

7.

Sim
Achar que sim
Achar o sim
Não achar
Nunca achar

8.

Contrasser
Contraestar
Contraver
Contraouvir
Contrapensar
Contragir
Contraviver

9.

Anti-talvez
Anti-talvez
Anti-talvez
Anti-talvez
Anti-talvez
Anti-talvez
Anti-talvez

10.






11.

Revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução revolução

23 de abril de 2021

[violência]

Tão escuro que só é possível olhar para dentro.
Tão claro que nem dá para fugir para dentro.

Não sair nem entrar, mas já estar dentro, e continuar fora.

Destruir caixas: pintar caixas de preto, pintar caixas de branco.
Não ter tinta branca nem preta.

Caminhar com um pé na luz e o outro na sombra.
Ter as duas mãos mornas.

Perder-se no preto.
Perder-se no branco.
Não se encontrar no nem-preto-nem-branco.

As coisas não são preto no branco.

26 de maio de 2021

[cimento céu e corpo]

CIMENTO

bloco de espaço ocupado
inflexibilidade e imposição
confronto com o meu corpo

CÉU

área de espaço infinito
intangibilidade
não é espaço do meu corpo

CORPO

o meu espaço
inevitabilidade
é cimento (matéria) e céu (pensamento)

30 de maio de 2021

[when all witnesses are gone Sofia Dinger]

fechas os olhos para que só eu te veja dançar
ouves canções nas paredes que guardam o tempo
cantas a mortos em cima de botas que caminham por dois

mostras-me peixes quase transparentes que sou eu e tu
conto-te as minhas memórias para te lembrares das tuas
cortas-me com as tuas palavras
falas-me de coisas que são só dos outros
mas neste momento só me lembro de ti
tens fios de fumo que levam o tempo e o pensamento
tens fios de lágrimas que lavam o tempo e o pensamento

revolução de escuridão, revela-me e me revela
      esconde-me e me esconde

só te conheço o íntimo

até agora nunca ninguém tinha olhado para mim

Almost Blue, Chet Baker
Valsinha, Chico Buarque
I See A Darkness, Johnny Cash
Roupa de Estrada, B Fachada

20 de junho de 2021

[TRAÇA Sara Anjo]

Falam-me de respirar, caminhar e parar. Em partituras e mapas. Em traçar percursos. Em registar movimentos. Em arquivar distâncias.

Penso nos lugares em que já estive. Hoje e nos outros dias todos. Quais os contornos desta linha (rasto invisível) que desenho desde o meu princípio? Quais as interseções, as sobreposições, os loops e as intermitências do meu percurso? Quais as densidades dos pontos de maior quietude? Quais os fôlegos que impulsionaram cada deslocação?

Penso também no meu corpo. Na minha máquina de correr distâncias. No meu dispositivo de mover massas. No meu motor de energia. Quais os seus limites?

Fico interessada em debruçar-me sobre estas perguntas. Não ter respostas, provavelmente. Ter novas questões.

27 de novembro de 2021

[Workshop Corpo, Palavra e Imagem, com Conceição Garcia]

1. Aquecer as palavras

O corpo é meu
O corpo é teu
O corpo é nosso
O corpo é do mundo
O corpo é um mundo
O corpo é eu no mundo
O corpo é eu
O corpo é necessário
O corpo não é necessário
O corpo é acessório
O corpo é o meu todo
O corpo é humano
O corpo é político
O corpo é potenciador
O corpo é o que escreve o que eu penso
O corpo é instrumento ou ferramenta ou mecanismo

Há corpos que não são corpos
Há corpos que não conheço
Há corpos que não se conhecem
Há corpos que já não existem mais
Há corpos que ocupam pouco espaço
Há corpos que ocupam muito espaço
Há corpos que não são humanos
Há corpos que se constipam
Há corpos que têm dores

Com o corpo ando
Com o corpo faço
Com o corpo existo
Com o corpo morro
Com o corpo contacto com o mundo
Com o corpo contacto
Com o corpo sinto
Com o corpo minto
Com o corpo sou

Quero que o meu corpo seja meu
Quero que o meu corpo se molde
Quero que o meu corpo me obedeça
Não quero que o meu corpo me obedeça
Quero que o meu corpo sinta
Quero que o meu corpo ocupe espaço
Quero que o meu corpo tenha peso
Quero que o meu corpo seja independente de mim

Será que já estou quente?
Aqueci sem dar conta.
Aqueci a relação do pensamento com a palavra.

Listas: escrever verticalmente.
Cada linha é uma coisa.
Cada coluna é um grupo.
A forma gráfica da escrita é também comunicativa.

2. Apresentação através do corpo

Eu sou as costas da Joana. Ela raramente pensa em mim. Estou a exagerar. Às vezes pensa. Quando quer sentir que está mais presente. Também se lembra de mim quando se deita no chão comigo para baixo. Gosta de me sentir como pés. De resto, vive para a frente. Tenho inveja dos olhos.
Apresento-me através do que digo. Apresento-me através da forma como digo o que digo. As palavras têm uma forma constante? São só combinações de letras? Ou o contexto é que lhes dá uma forma específica? Existe uma forma de representar isso graficamente? Os sinais de pontuação parecem-me um pouco vagos...

3. Escrever no corpo

Escrever para quê?
Etiquetar o corpo:
Escrever "pé direito" no pé direito, "mão esquerda" na mão esquerda.
Ou.
Escrever "mão esquerda" no pé direito.
Penso no meu corpo como palavras?
Será que "pé direito" quer dizer o meu pé direito?
Ou todos os pés direitos?
Eu sei o que quer dizer "pé direito" porque tenho um pé direito.
O corpo pede palavra?
Quero impor palavra ao meu corpo?
Quero pôr o meu pé direito no contentor "pé direito"?
Porque tenho que olhar para os dedos, o tronco, o calcanhar e a planta do pé como o conjunto "pé direito"?
Porque nem tenho nome para o tronco do pé?
Os franceses têm: "cou de pied".
Porque razão os meus pés se chamam ambos "pés"?
Porque digo "pé esquerdo" e "pé direito" e não "mãos de baixo"?

16 de fevereiro de 2022

[MANIFESTO]

1. A dança é dos corpos

corpos esquecidos, adormecidos e derretidos,
corpos infantis, curiosos, ágeis, deslizantes,
corpos velhos, enrugados e cansados,
corpos jovens, disruptivos, modificados e personalizados,
corpos deprimidos, oprimidos, empilhados, embrulhados,
corpos magros, esqueléticos, insignificantes,
corpos voluptuosos, sinuosos, brilhantes,
corpos negros, amarelos e azuis,
corpos próximos e familiares,
corpos brutos, fissurados, marcados, violentados,
corpos sensuais e sexuais,
corpos animais, primitivos e naturais,
corpos obesos e cheios,
corpos incompletos, amputados e protéticos,
corpos fictícios, digitais, transumanos,
corpos vergados e suplicantes,
corpos ativos, reativos e políticos,
corpos perdidos,
corpos extintos,
corpos noturnos, loucos e sós,
corpos imortais,
corpos ausentes,
corpos fracos e frágeis,
corpos nus, despidos, desenfeitados,
corpos sujos e malcheirosos,
corpos com entradas e saídas,
corpos permeáveis e sensíveis,
corpos dos outros,
corpos nossos.

2. Diz Gonçalo M. Tavares, n’O Livro da Dança

Meter na dança carne.
A carne é igual no feminino e no masculino.
Descobrir o corpo anterior ao feminino e descobrir o corpo anterior ao masculino.
A carne é o corpo anterior ao sexo.
Meter carne na dança.
Deixar a dança ser primeiro que o corpo.
Não meter carne na dança. Não tirar carne da dança.
Deixar a dança ser naturalmente carne.


3. Carta ao corpo em manifesto do Miguel

Este é um corpo em processo. É um corpo turbulento, que caminha sem ver o final da estrada. É um corpo veículo produtor, produtor de emoções, onde a generosidade do tempo não lhe tocou. Este é um corpo com necessidades que vê adiadas por imposição social. É um corpo político, cansado de visões estereotipadas, cansado de filtros. Este corpo olha, este corpo sente, este corpo é vulnerável, pessoal e intransmissível. Este corpo é uma escultura, é a exacerbação da perfeição. Este é um corpo capaz, capaz de passar, aceitar e ressignificar. Este é um corpo que questiona, que reconhece e que muda. Este é um corpo inundado. Este é um corpo com história. Este corpo cuja paisagem já não cabe nos seus limites. Este corpo é casa. Este corpo é a factualidade da vida. Este corpo tem voz e chama-se MIGUEL.

Olá, Miguel. Olá, corpo do Miguel. Proponho uma conversa de corpo para corpo. Este também é um corpo em processo, diria que todos o são. Estão. Que qualquer coisa que existe está em processo. Falas em turbulência e acho que sei o que queres dizer. A minha é mais como as linhas intermitentes da estrada. O corpo como veículo para pertencer à realidade – um carro com janelas. Ou sem. Lembro-me do texto de Matthew Goulish: not only am I inside the car, but in fact, everything is inside my car – the road is inside my car. O corpo como uma máquina de produzir emoções. Produzir, produzir, produzir – imposição! É difícil ver um corpo como um corpo, tem muitas camadas: o corpo e a visão. Filtros, como dizes. Tu olhas e eu também olho, tu sentes e eu também sinto, tu és vulnerável e eu também. Pessoais mas um bocadinho transmissíveis. Somos forma, volume, equilíbrio, peso, massa, densidade, texturas, bordas, contornos. A receita varia de uns para outros mas existimos e talvez isso seja ser perfeito. O corpo capaz de transformar (a forma aqui outra vez). O corpo capaz de transbordar (as bordas aqui outra vez). Um corpo com história, ou sem história, ou com histórias diferentes ao longo do tempo. Primavera, verão, outono, inverno. Parece que agora somos ainda mais vizinhos. Olá, Miguel.

4. Procurar fora da verticalidade

A primeira dança é o erguer-se nos dois pés. O ser humano é bailarino pela sua condição.
(Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo)
For in the void of a body expropriated of its centre, there is room for dance.
(Boris Charmatz, manifesto for a National Choreographic Centre)

5. O corpo contemporâneo está demasiado limpo

Está tudo pronto-a-comer, pronto-a-vestir, pronto-a-transportar, pronto-a-funcionar, pronto-a-usar.
O corpo contemporâneo precisa de se sujar — dançar!

uma breve apresentação

danço o corpo e a imagem
sarrabisco vários tipos de papel
moro às vezes no espaço virtual
gosto de gatos em janelas de casas
tenho a roupa estendida
não fujo da chuva lá fora
levo pedaços de vida
trago arte nos bolsos do casaco